Pular para o conteúdo principal

Sofia e a véspera (conto)

Jameson Brandão

No leito do hospital encontra-se a pequena menina. Seus pais ao lado, cabisbaixos. A mãe encontra-se lavando o chão com as lagrimas, o pai, mais seguro, mas os olhos revelam suas marcas. A noite continua a passos lentos, não quer deixar entrar a manhã e ela se achegar, para que os raios de sol iluminem os corações e aquecem mais a vida tremula. No quarto, nada é agradável, o cheiro de álcool misturado com suor e sangue. A vida parece até não passar. Não passa. Continua exuberante para quem um dia soube aproveita-la, e que tenha tempo para aqueles que querem, mas não podem.
Saudade, saudade. Porque chega-la agora? O coração está tão pequeno, o mínimo do mínimo. E as aventuras, sentimentos, não se desvaem. Permanece intacto, mas como uma brecha entre abismo e paraíso. Porque naquele dia ela estava ali? Não poderia ser eu? Só não foi. Mas devia. A cada momento fica mais tenso as sensações no hospital, a parede branca não transmite paz, mas o caminho da morte. O espaço pequeno e compartilhado, angustia ainda mais, o saber, a loucura é cada vez mais presente. Como se fosse sala de operação, os bisturis, tesouras e agulhas se entreolham. Pediam uma mão presente.
Naquele anto não parecia nem que tinha os símbolos da fé, mas tinha tortura psicológica, vontade de se despedir. Hoje é véspera do dia das crianças, estávamos nos preparando para os festejos do dia seguinte, eu já tinha preparado tudo para Sofia, ela estava muito feliz, e eu ainda mais. Pela manhã tinha preparado o bolo de chocolate com morango, cobertura de chantili e recheio de coco, é o seu favorito. Ela estava comigo a toda hora, quando mexíamos a massa, ela experimentava. Quando batia os ovos, ela dizia que fedia, que não ia comer. Mas no final, ela entendia, dizia que ficaria gostoso, mas faltava algo, as raspas da barra de chocolate para colorir o branco do chantili. Realmente faltava, como pude esquecer? Não deveria ser comum esquecer os ingredientes, faço isso a três anos depois do curso de confeiteiro, vivo assim. Sofia falou que podia ir comprar o chocolate que faltou para decorar, achei repugnante no momento, já que mora ao lado de uma avenida muito movimentada e o mercado fica do outro lado. Mas tem uma passarela, que nos levaria com alguma segurança. Pelo menos é o que parecia.
Não tinha deixado ela ir, tinha apenas nove anos, mas sua mãe me disse que podia deixar, ela já tinha costume. Fiquei com medo, tinha dito que iria, era melhor, mas ela falou:
- Nada menina, Sofia vai para você, ela já está acostumada, uma vez ou outra, mando ela comprar uns cigarros para mim, nunca teve nada vai ter agora! Disse Isadora, mãe de Sofia.
Então lhe dei catorze reais e cinquenta centavos, seria o bastante! A sua mão estava suada, tinha perguntado se estava bem, disse-me que sim.  Ela foi em direção a porta, abriu, olhou para trais e me mandou um beijo, soprou, e eu agarrei. Foi um momento único, ela estava feliz e eu preocupada. Ela caminhava pela rua. Pulava e cantava, eu observava-a de longe. Mesmo contrariando sua mãe, que queria que eu ficasse para adiantar as empadinhas e os rabos de tatu. Seria uma confraternização em família, mas não pude deixa-la ir sozinha. Observava de longe.
O outro dia estava programado para ser uma festa simples, só para as criancinhas mesmo. Alguns amiguinhos da mesma rua e os primos, muitos vieram até de longe, já tinha se tornado um evento cultural, junto com a tradição do quebra-pote. O quebra-pote teria algumas balas e umas trufas, chocolate com morango, o sabor que ela gostava.
Foi indo na direção da passarela que as movimentações começaram a me dar medo. Foi então que vi uma tropa de policiais armados com armas que nunca tinha visto, tinha um cano grosso, tinha umas do cano fino, mas cumpridas. Eles foram na direção da passarela, tinha uns homens de costas, estavam parados até a chegada repentina dos policiais, eles correram em direção a passarela, tinha muita gente, e as pessoas começaram a correr também, formou-se um verdadeiro tumulto. Foi quando percebi que Sofia estava na passarela, tão pequena em meio as pessoas, se formou um verdadeiro empurra, empurra, então corri também na direção da passarela. Junto dos rapazes havia duas moças, uma delas se parecia muito comigo, elas também correram. Antes que eu chegasse à passarela, andei por detrais de uma tenda armada na rua, acho que era de um camelô, a mulher passou por mim, desviou de ir para a passarela, mas eu estava indo e correndo bem rápido. Quando estava para chegar, ouvi alguém gritar, parecia um soneto agudo aos ouvidos, o som era inocente e limpo.
Estava tão alegre ao voar sem asas da passarela, do alto as veredas não seguraram as simples passadas infantis e as truculências. A polícia prendeu dois rapazes e uma moça. Eu estava próximo ao acontecido, mas agora distante estarei. Ao ver aquela cena, percebi que a beleza pode ser corrompida, a simplicidade pausada, e a vida até tirada, do chão a passarela eram vinte metros. O olhar era único, os meus passos não conseguiram alcançar Sofia, ela mergulhou sem saber nadar no mundo de concreto, e com seus peixes furiosos ao invadir a praia. Ela caiu, e mergulhou nos olhos do peixe. Dentro tinha mais uns olhos de luz, inocente, que se desesperou. Sua mãe parou e tirou a pequenina inocência do animal com olhos danificados, mas Sofia ficou, ali, imóvel, e o veículo branco ia ficando igual aos morangos, vermelhinhos, vermelhinhos, mas de longe eu ainda a vi suspirar, tremer o corpo. Não vi mais nada, ficou tudo escuro e só escuto o som das sirenes, é viatura policial, é ambulância. Apaguei.
Hoje é o dia das crianças, não sei o que aconteceu com Sofia, mas sei que estou aqui contigo, mesmo com essas barras aqui a minha frente, até comeria se fosse chocolate. Mas estou chorando com o coração, e falando com os cabelos. Sou inocente, e todos sabem, mas lembro-me do que diria a minha pequena:
- Nada de limão no bolo, só é chocolates e morangos!
Infelizmente, pequena! Não colocaram limão em meu bolo, mas sim, urtigas e fermentos.
- É colega, tu estás pior que eu. Pelo menos matei, mas tu, pelo que vejo.... Dizia a colega na prisão antes de enfartar. Agora seu julgamento será dobrado.
Neste momento estou mais triste, fiquei sabendo assim por auto, que no hospital morreu uma pessoa, estava com bisturi na mão, mas com o sinal marcando o pulso, minha pequena Sofia não merecia, porque tanto sofrimento? Porque?

Não quero que me abandone sem ao menos comer do seu bolo, não fazia para todos, é como se fizesse exclusivamente para ela. Que acorde e prove do chocolate e dos morangos. Mas agora estou mais tremula que antes, a mulher caiu do meu lado, e eu não consigo gritar, estou ficando sem forças, e os meus olhos estão perdendo a sua luz. Deve ter sido o café da noite.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Dia de São Berto Lameu (conto)

Jameson Brandão Era um dia santo, e tudo começara em uma sexta feira. O vento e o barulho da floresta se manifestavam e se mostrara vivos, mas o dia era santo, a noite também. Ao cair da tarde, o crepúsculo manifestara-se de forma abstrata, o vento não era o mesmo, a floresta também mudara. Um senhor muito supersticioso que tinha por volta de seus setenta anos, na roça se encontrara, se quer lembrara-se desse dia, mas não estava sozinho, fora com seu companheiro Boca-Preta, o amigo cão inseparável de suas viagens. Ele dentro do barraco tomara seu café e se preparara para repousar, o dia no campo é difícil, o trabalho é pesado e o sol é quem mais castiga o trabalhador. Foi quando do lado de fora da casa um trovejo se formara, o cachorro tinha acuado um saruê. O animal encontrara-se em cima de um pequeno mamoeiro de nada mais além do que um metro, quando escutara o trovejo saíra armado com um facão, fora em direção e vira o animal, tentara o acertar, espanara com o fa

Itaberaba em poesia

Jameson Brandão Sou uma pequena menina Nascida, criada pelo Paraguaçu, Os braços da chapada me abraçaram Como me abraça tu. Vou te falar como tudo começou Desde a vinda do tal conquistador Até a igreja de Nosso Sinhô. Diziam que ninguém estava ali, Mas sabe atrás das grandes rochas? Vivia um povo artista Eram os índios Maracás, Do povo Tapuias. E para surgir a Itaberaba Um dia foi fazenda Lembramo-nos de Cajado, Que fundou a São Simão Na caatinga do nosso sertão. Mas pensa que acabou por ai? Depois foi só crescimento Veio à pequena igrejinha Que podia ser até um convento. Se tudo está crescendo, Lembramo-nos do rosário, Foi construída ao centro forte, Senda ela força e grave Tornou-se uma vila Que de tão bonita, Tornava-se poesia. Mas e dom Vasco Rodrigues? Sabe-se lá para onde ia? Mas deixou conosco pertinho, Os caminhos de tal folia. E o tempo foi acelerando Pessoas por aqui passando, Tudo de ma

Semana de Cultura Itaberabense: Escola Municipal Carlos Spínola da Cunha

"A reciproca foi imensa, obrigado" Somos todos cavaleiros que procuramos a todo o momento estar sempre unido a criatura, somos garças sobre a água, somos todos águas que jamais retornaram a sua devida morada. Durante a Semana de Cultura Itaberabense, fui convidado a estar escrevendo alguns poemas para serem declamados pelos alunos da  Escola Municipal Carlos Spínola da Cunha, no povoado de Guaribas, fiquei muito lisonjeado pelo convite e escrevi alguns poemas exclusivamente para esse evento, convite esse, que só tenho a agradecer a Jamile Oliveira  por ter me proporcionado ter vivido uma reciprocidade imensa naquele lugar. Saio desse lugar esbaldado de bons frutos, pela alegria, carinho e a simplicidade em que me receberam. Agradeço também a toda direção, coordenação, professores, merendeiras... todos, porque é somente quando nos unimos é que somos capazes de surpreender e ser surpreendidos, a filosofia da vida não é única, mas pode ser sintetizada em partes como um